Poemaduro

Poemaduro
O que nos espera nestas páginas é um formato eclético de poesia que não se ocupa meramente em perseguir estilos predefinidos ou regras acadêmicas. Ao contrário, considerando-se que não há como se escapar aqui de algum tipo de impacto, "esbarraremos" em um poeta livre e original, que conduz sua criação, a um só tempo, com a leve candura de um colibri, mas com o vigor e a autonomia de uma águia dos desertos. Enquanto colibri, Mailton Rangel extrai de sua mais intimista subjetividade, toda uma complexidade de conteúdo com o mínimo de movimentos ou barulho, mostrando, às vezes, com as imagens e os silêncios de poucas palavras, muito mais do que os olhares displicentes possam captar. "Eu busco um lirismo forte / Uma espada / Um devaneio / E uma tocha... / Já não me espanto mais / Com flor que desabrocha / Quero um desabrochar... de rocha!" Já a águia, revela-se pela apurada acuidade visual, capaz de enxergar seus objetivos até quando distantes e camuflados sob carapaças. Isso se associa à determinação de lançar-lhes suas garras e sacudi-los, até que dali se transpareça uma essencialidade esquecida ou petrificada. "Por mim / Não existiria uma só praça / Com nome de general / Porque praça / É lugar de criança / E general que tem nome / Ainda hoje me lembra... Matança!"

Princípio do Enigmanismo

Princípio do Enigmanismo
Óleo sobre tela de Mailton Rangel

terça-feira, 27 de setembro de 2011

SOLILÓQUIO

"Zé no carnaval" - Óleo sobre tela - Mailton Rangel.




SOLILÓQUIO


Somente em versos traduzo,

O timbre dos meus gorjeios

E eu,

Que em vez de nascer direito,

Feito meu pai,

Águia de peito farto e índole fecunda,

Cheguei-me tão torto quanto atordoado.

E eis, que, por aqui,

Mais de uma vez,

Com minh’asinha esquerda mais preparada,

Pus-me a depositar – voltas e meias,

Um refugado papel sobre a mesa,

Com o tino dúbio de desempenhá-lo.

Com isso,

Não demorei tanto para sonhar em voar;

Embora que, paradoxalmente,

Eu ainda não conseguisse domar a contento

Esta razão primordial das minhas procuras:

– A indescritível condição de poder planar

Ao fluxo de quaisquer intempéries!

E assim,

Tal como faria aquele

Que um dia venceu sem sombra

O torpe “silêncio das línguas cansadas”,

Sigo vomitando versos confusos,

Que falam de uns poetas mortos,

Que tanto insistem em viver comigo!

Mas isto,

Vindo ao encontro,

É o que ainda me mostra um tanto balsâmico,

Feito abraço de amigo do peito,

Beijo de mãe,

Ou um simbólico cesto de pão!

Entretantos,

Forjado em vis aparecedouros do esgoto humano,

Creio que eu não fosse antes somente ruim,

Feito gente truncada que se acostuma com tudo,

Posto que, em tal estágio,

Eu somente me desfigurava,

Além do menos,

Como um exímio acostumador,

Porque as minhas exéquias

Já não reclamavam de nada.

Todavia,

Em belo dia,

Quando eu finalmente ascendi de vez,

Com auto-confiança e determinação,

Olhando lá do alto as minhas limitações...

Foi com o ruflar das minhas asas

Que eu compreendi,

Que eventuais becos sem saída no curso do vôo

– Pseudo-risco natural dos que sonham mais alto,

Nada mais são que a infantil limitação,

Daqueles que nem sabem voar para trás,

Como forma essencial de aprimoramento

Para o seu novo e áureo recomeço.

Detectei, pois, que,

Em pleno vôo ou a cada arremesso,

Surgem-nos determinados labirintos

Em que a única saída salutar plausível

Consistiria no próprio pórtico de entrada;

O que suscita e traz à baila a velha certeza

Que ainda nos exige um pouco mais

Que a simples humildade de retroceder:

Há, pois, que se reinventar o fôlego novo,

Para que se consiga voar em dobro,

Mesmo sob o risco iminente

De que tal retorno nos exponha

Ao mais chicoteante escarnecimento,

Por parte das mesmas aves de rapina,

Que já nos puderam apreciar

Estatelando o bico e a cara depenada

De encontro a um sólido rochedo.

Aquelas, que,

Estacionadas por seu próprio peso,

Temem se esforçar pra voar de verdade,

E por isso, igualmente ignorariam

O peso e a valia de se respeitar a queda alheia,

Porque também não lograriam o gozo do prêmio

Pela busca de um novo brilho de horizonte!

E se o ato mais complexo

Consiste no rumo vertical ascendente,

Quando o rarefeito ar nos produz vertigens,

Impedindo-nos de divisar

Entre a prontidão e a letargia;

Entre o sonho e a realidade;

Entre o acerto e a estupidez...

Este será destarte o exato instante

Em que, na busca de uma luz posicionada

Acima do imediato breu que vislumbramos,

Aí é que nos tornaremos paulatinamente habilitados

Para transpassar, com segurança e força redobrados,

Todo e qualquer manto de noite

Que insista em procrastinar

O nosso ansiado alvorecer,

Bem como,

Passíveis de ver e elucidar

As mais imediatas perspectivas de Deus!

...Todavia,

No afã de sufocar neste momento

A controversa pretensão de enveredar por tanta bruma,

Diga-se que só vim pra traduzir o motivo

Por que sempre me lanço em voos errantes,

Feito um pardal novo à fúria do vento:

É que essa doce quimera que eu respiro

E que tanto me descondiciona,

Acima e a despeito de qualquer alegoria...

É voar!...

Mesmo que desprovido dos agudos olhos de um lince,

Do vislumbre de um arco-íris guia,

E da salvaguarda das bengalinhas brancas;

Porque se eu sigo tropeçando em pedregulhos,

Transformo-os em alicerce,

Edificando-me sobre todos eles;

E sempre que – até sem pretender,

Também arranho algumas flores com as unhas,

Eu acabo absorvendo um tanto dos seus perfumes.

Entrementes,

Considerando-se que voar,

Pode não ser tão preciso quanto navegar,

Vejo que não devo abstrair minha atenção

Das inexoráveis marcas que o tempo traz,

Porque são elas o inconfundível alarme

Que tange minh’alma de pássaro-poeta,

Mostrando-me que traio a mim mesmo,

Sempre que desempenho apenas papéis,

Que durmo nas horas de vigília,

Ou que me proponho a acreditar

Que as tolas maquiagens de cascas e penas

Pudessem ser capazes de suplantar

Mesmo que a mais simplista modalidade de amor.

Portanto,

Agora e sempre,

Tudo que quero é continuar voando assim,

E mesmo que eu nem soubesse como,

Nem quando,

Nem para onde...

Insistiria obstinadamente em perseguir

Esse lirismo tão libertador,

Que não mais de mim se esconde!



(Mailton Rangel, Publicado no livro POEMADURO)

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2 comentários:

  1. continue voando, poeta, com estes fluxos tão líricos... coeso do início ao fim. Adorei a intensidade. Parabéns.


    "Zé no carnaval" é show! Parabéns pelo simbolismo.

    Fã de carteirinha!

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  2. Dhenova, sua presença, e ainda mais, valorizando meu texto assim... é motivo de enorme alegria.

    Esse texto (só você viu) é o retrato da minha alma!

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